Para quem ali chega, aquilo não parece um sonho, mesmo que haja um autocarro que diga explicitamente que vai para lá. Tem escrito “Sonhos” ao lado do número 703. Arranca da Cordoaria, no centro do Porto, e quarenta minutos depois pára no destino com nome idílico.
Lá dentro, a viagem faz-se tranquilamente. O rádio está desligado, não há conversas animadas, nem conversas nenhumas. As menos de dez pessoas que seguem a bordo não se conhecem. Umas ouvem música, outras, de olhos colados nos vidros embaciados, veem desfilar fragmentos da vida de cidadãos alheios à passagem de um autocarro com um destino, à partida, tão tentador. Com casacos escuros, grandes e pesados, o ambiente seria quase monocromático, não fosse um rapaz que se veste de cor-de-laranja e escreve SMS’s suficientes para completar dois ou três capítulos de um romance qualquer, enquanto sorri para o telemóvel e bebe um refrigerante.
O silencio é apenas cortado pelo barulho do motor do autocarro ou pela voz feminina mecanizada que grita nomes de pessoas e de locais com uma paragem de atraso, resultado de sucessivos semáforos vermelhos.
Um pouco mais depressa, o autocarro acerta o ritmo e continua a atravessar a cidade. Sobem uns passageiros, descem outros. Ao entrar na periferia, os prédios dão lugar às casas, a distância entre as paragens aumenta e a paisagem é quase toda verde. Chega-se a Ermesinde e já não há nenhum dos passageiros iniciais a bordo, os que seguem são na maioria idosos. Poucos minutos depois, nesta tarde de sexta-feira, também ninguém sai em Sonhos.
O autocarro pára de repente no cimo de uma rua. E é isto. Sonhos fica no alto de uma rua íngreme, feita de paralelos que já foram calcados por muita gente. Há montes de um lado, chaminés do outro e menos de cinco prédios, o resto são casas.
Todos se conhecem
Na paragem de autocarro no sentido contrário, Joaquina Amaral espera que o 703 a leve rua abaixo até à estação de Ermesinde. O cabelo curto, a maquilhagem e a vivacidade com que fala escondem a idade avançada. 87 anos e há 45 a viver em Sonhos. “Viver aqui é um sonho para mim. Não há problemas, cada um tem a sua casa. Conhecemo-nos todos”, conta. Passa um vizinho, cumprimenta-o pelo nome próprio, confirmando a veracidade da afirmação. Chega outra senhora e a conversa muda de assunto. O último episódio da novela ocupa-lhes agora o tempo enquanto o autocarro não chega.
A loja está vazia e nos últimos anos tem sido assim, mas isso não faz Manuela Mariano querer fechar as portas do minimercado e abandonar aquele cimo de rua com vista para a zona industrial. “Não. Sair daqui para quê? As pessoas é que têm a crise na cabeça. E não é menos uma maçã ou um pão que me vão fazer diferença”, diz sorridente. Fala depressa, ao ritmo a que limpa o balcão. Atrás de si, o marido não diz que sim, nem que não. Continua concentrado a varrer o chão.
Um lugar envelhecido
Abriram o minimercado há 23 anos. Têm de tudo: frutas, legumes, produtos para casa e de higiene pessoal. Todos organizados em prateleiras que forram as paredes da loja. Conhecem os moradores e os seus gostos de cor. Sabem a que horas costumam passar e aceitam que lhes paguem só no final do mês. Ultimamente, sentem que trabalhar e viver ali é cada vez mais um sonho envelhecido. “Os filhos crescem, têm carro e afastam-se. São quase só velhotes”, conta Manuela. Mas com o autocarro à porta, mesmo os mais velhos se deixam atrair pelo Maia Shopping, o grande concorrente deste casal. “Às vezes é sair por sair, porque a maioria das pessoas daqui trabalha na STCP e depois a família acaba por andar de graça, está claro!”. Pára de limpar o balcão e pousa o esfregão verde. “Mas pelo menos há transporte. Eu gosto de viver aqui. É mais calmo, há poucos assaltos. É tudo verde à volta. Há café, peixaria e eu vivo numa loja, tenho comida, que mais posso pedir?”.
Na rua passa um miúdo de mão dada com a mãe. Espreita pela cortina de plástico que substitui a porta: “’Olá!’”. A mãe ri-se. “’Olá, meu amor!’”, responde Manuela. “Está a ver, até o cachopito diz olá. É muito bom viver aqui”. Sorri.
O café de que Manuela falava fica numa esquina, poucos metros abaixo. Ninguém se senta nas cadeiras e mesas de plástico à porta. Está sol, mas o frio não é convidativo. Há quatro ou cinco janelas e as paredes são de azulejos brancos, porém o ambiente é escuro e cheira ligeiramente a álcool. Num canto, por cima da porta, a televisão está ligada num noticiário e a noticia é sobre o Orçamento do Estado. Mas naquele café de Sonhos não se discute economia. Joga-se dominó ou conversa-se à volta de chávenas de café vazias.
O café é do pai, mas é Carlos Silveira que está de serviço. Tem 32 anos, nasceu em Sonhos, estudou em Sonhos e viveu ali quase a vida toda, no entanto, há três anos decidiu mudar-se para Ermesinde. E aqueles cinco minutos de distância fizeram toda a diferença. “É que aqui, em termos de cultura, não há nada. Não há distrações. 80% das pessoas devem ter mais de 55 anos”, explica enquanto serve um café e um bagaço a um cliente habitual. “Depois também havia o problema da droga e da insegurança. À noite era preciso ter cuidado, mas agora já não se nota tanto”, acrescenta.
De facto, a insegurança não é previsível nos vidros abertos dos carros estacionados nem nas portas das garagens escancaradas para a rua e podem até ouvir-se os próprios passos quando se caminha.
Falta farmácia e restaurante
“Eu já vivo aqui há 60 anos. Sim, quase 60 anos, e não me sinto insegura”, afirma Margarida Fernandes, 59 anos. Brinca com a chávena de café vazia e acrescenta. “O que faz falta é uma farmácia ou um restaurante. Se uma pessoa quiser ir buscar comida tem de ir a Ermesinde que aqui não há”. O sotaque do Norte é mais acentuado do que o das amigas. Augusta Monteiro, 78 anos, Augusta Ferreira, 51, e Joana Ferreira, 21. Avó, mãe e neta. E ainda há o Guilherme, o filho de Joana, de 15 meses, que dorme no carrinho de bebé.
A rotina de Margarida e de Augusta é praticamente igual. Acordam, ficam por casa, depois do almoço vão até ao café. De vez em quando, apanham o autocarro e vão às compras a Ermesinde. “E cheguei a ir a pé muitas vezes quando não havia autocarro”, recorda Augusta. “Ah, mas já há autocarro há uns anos”, interrompe Joana, a neta. “A ponte é que é recente. Tem lá escrito “2000”. E foi uma boa coisa. Antes íamos para a escola pelo meio do monte, da lama e tudo”.
Sonhos mudou um pouco nos últimos anos. Em Setembro, foi construída uma escola com primeiro ciclo e infantário, o que promete trazer mais gente nova e mais agitação rua acima e rua abaixo. Pelo menos naquela mesa de café, os mais velhos agradecem. “Também disseram que iam construir uma capela lá em cima. têm o terreno, têm tudo, mas até agora nada, não é, meu menino?” Augusta sorri para o bisneto que acaba de acordar.
“Eu já tenho 60 anos e vou continuar a viver aqui. Por mim, hei-de viver sempre aqui. Da minha casa só saio para o cemitério”, afirma Margarida. Augusta, a avó do bebé, corta o negativismo e diz que é capaz de viver em qualquer lado. Mudou-se há uns anos para Ermesinde, onde a filha Joana também vive com Guilherme. “Lá é muito diferente. Imagino-me a criá-lo lá perfeitamente. É que nem se compara”, afirma Joana.
Um sonho que já lá vai
“Pronto, está a ver? Ganhou outra vez!” Pousa uma peça em cima da mesa e desfaz o jogo, o quinto ou sexto daquela tarde, já perdeu a conta. Aos 37 anos, António Coelho joga dominó para se entreter. É ferrageiro, mas não tem o que fazer. O trabalho não aparece. “É muito difícil. Ainda ontem liguei para Cinfães do Douro para um trabalho que me iam arranjar e nunca mais disseram nada. Isto está bom é para o primeiro-ministro”. Volta a baralhar as peças com as mãos calejadas pelas ferragens e termina de beber a cerveja pousada na mesa ao lado.
Também ele gosta de viver em Sonhos. Vive no bairro camarário e não tem motivos para reclamar. Antes, vivera noutros bairros onde nem sequer havia casas-de-banho nos apartamentos, portanto agora está melhor.
Mas mesmo em Sonhos já viveu melhores dias. A mulher está igualmente desempregada e os filhos ainda estão a estudar. “Vive-se como se pode... Isto já foi um sonho, já, mas agora não. Antes fosse, antes corresse bem”. Suspira e volta a pegar na garrafa que, entretanto, já é outra.
Lá dentro, a viagem faz-se tranquilamente. O rádio está desligado, não há conversas animadas, nem conversas nenhumas. As menos de dez pessoas que seguem a bordo não se conhecem. Umas ouvem música, outras, de olhos colados nos vidros embaciados, veem desfilar fragmentos da vida de cidadãos alheios à passagem de um autocarro com um destino, à partida, tão tentador. Com casacos escuros, grandes e pesados, o ambiente seria quase monocromático, não fosse um rapaz que se veste de cor-de-laranja e escreve SMS’s suficientes para completar dois ou três capítulos de um romance qualquer, enquanto sorri para o telemóvel e bebe um refrigerante.
O silencio é apenas cortado pelo barulho do motor do autocarro ou pela voz feminina mecanizada que grita nomes de pessoas e de locais com uma paragem de atraso, resultado de sucessivos semáforos vermelhos.
Um pouco mais depressa, o autocarro acerta o ritmo e continua a atravessar a cidade. Sobem uns passageiros, descem outros. Ao entrar na periferia, os prédios dão lugar às casas, a distância entre as paragens aumenta e a paisagem é quase toda verde. Chega-se a Ermesinde e já não há nenhum dos passageiros iniciais a bordo, os que seguem são na maioria idosos. Poucos minutos depois, nesta tarde de sexta-feira, também ninguém sai em Sonhos.
O autocarro pára de repente no cimo de uma rua. E é isto. Sonhos fica no alto de uma rua íngreme, feita de paralelos que já foram calcados por muita gente. Há montes de um lado, chaminés do outro e menos de cinco prédios, o resto são casas.
Todos se conhecem
Na paragem de autocarro no sentido contrário, Joaquina Amaral espera que o 703 a leve rua abaixo até à estação de Ermesinde. O cabelo curto, a maquilhagem e a vivacidade com que fala escondem a idade avançada. 87 anos e há 45 a viver em Sonhos. “Viver aqui é um sonho para mim. Não há problemas, cada um tem a sua casa. Conhecemo-nos todos”, conta. Passa um vizinho, cumprimenta-o pelo nome próprio, confirmando a veracidade da afirmação. Chega outra senhora e a conversa muda de assunto. O último episódio da novela ocupa-lhes agora o tempo enquanto o autocarro não chega.
A loja está vazia e nos últimos anos tem sido assim, mas isso não faz Manuela Mariano querer fechar as portas do minimercado e abandonar aquele cimo de rua com vista para a zona industrial. “Não. Sair daqui para quê? As pessoas é que têm a crise na cabeça. E não é menos uma maçã ou um pão que me vão fazer diferença”, diz sorridente. Fala depressa, ao ritmo a que limpa o balcão. Atrás de si, o marido não diz que sim, nem que não. Continua concentrado a varrer o chão.
Um lugar envelhecido
Abriram o minimercado há 23 anos. Têm de tudo: frutas, legumes, produtos para casa e de higiene pessoal. Todos organizados em prateleiras que forram as paredes da loja. Conhecem os moradores e os seus gostos de cor. Sabem a que horas costumam passar e aceitam que lhes paguem só no final do mês. Ultimamente, sentem que trabalhar e viver ali é cada vez mais um sonho envelhecido. “Os filhos crescem, têm carro e afastam-se. São quase só velhotes”, conta Manuela. Mas com o autocarro à porta, mesmo os mais velhos se deixam atrair pelo Maia Shopping, o grande concorrente deste casal. “Às vezes é sair por sair, porque a maioria das pessoas daqui trabalha na STCP e depois a família acaba por andar de graça, está claro!”. Pára de limpar o balcão e pousa o esfregão verde. “Mas pelo menos há transporte. Eu gosto de viver aqui. É mais calmo, há poucos assaltos. É tudo verde à volta. Há café, peixaria e eu vivo numa loja, tenho comida, que mais posso pedir?”.
Na rua passa um miúdo de mão dada com a mãe. Espreita pela cortina de plástico que substitui a porta: “’Olá!’”. A mãe ri-se. “’Olá, meu amor!’”, responde Manuela. “Está a ver, até o cachopito diz olá. É muito bom viver aqui”. Sorri.
O café de que Manuela falava fica numa esquina, poucos metros abaixo. Ninguém se senta nas cadeiras e mesas de plástico à porta. Está sol, mas o frio não é convidativo. Há quatro ou cinco janelas e as paredes são de azulejos brancos, porém o ambiente é escuro e cheira ligeiramente a álcool. Num canto, por cima da porta, a televisão está ligada num noticiário e a noticia é sobre o Orçamento do Estado. Mas naquele café de Sonhos não se discute economia. Joga-se dominó ou conversa-se à volta de chávenas de café vazias.
O café é do pai, mas é Carlos Silveira que está de serviço. Tem 32 anos, nasceu em Sonhos, estudou em Sonhos e viveu ali quase a vida toda, no entanto, há três anos decidiu mudar-se para Ermesinde. E aqueles cinco minutos de distância fizeram toda a diferença. “É que aqui, em termos de cultura, não há nada. Não há distrações. 80% das pessoas devem ter mais de 55 anos”, explica enquanto serve um café e um bagaço a um cliente habitual. “Depois também havia o problema da droga e da insegurança. À noite era preciso ter cuidado, mas agora já não se nota tanto”, acrescenta.
De facto, a insegurança não é previsível nos vidros abertos dos carros estacionados nem nas portas das garagens escancaradas para a rua e podem até ouvir-se os próprios passos quando se caminha.
Falta farmácia e restaurante
“Eu já vivo aqui há 60 anos. Sim, quase 60 anos, e não me sinto insegura”, afirma Margarida Fernandes, 59 anos. Brinca com a chávena de café vazia e acrescenta. “O que faz falta é uma farmácia ou um restaurante. Se uma pessoa quiser ir buscar comida tem de ir a Ermesinde que aqui não há”. O sotaque do Norte é mais acentuado do que o das amigas. Augusta Monteiro, 78 anos, Augusta Ferreira, 51, e Joana Ferreira, 21. Avó, mãe e neta. E ainda há o Guilherme, o filho de Joana, de 15 meses, que dorme no carrinho de bebé.
A rotina de Margarida e de Augusta é praticamente igual. Acordam, ficam por casa, depois do almoço vão até ao café. De vez em quando, apanham o autocarro e vão às compras a Ermesinde. “E cheguei a ir a pé muitas vezes quando não havia autocarro”, recorda Augusta. “Ah, mas já há autocarro há uns anos”, interrompe Joana, a neta. “A ponte é que é recente. Tem lá escrito “2000”. E foi uma boa coisa. Antes íamos para a escola pelo meio do monte, da lama e tudo”.
Sonhos mudou um pouco nos últimos anos. Em Setembro, foi construída uma escola com primeiro ciclo e infantário, o que promete trazer mais gente nova e mais agitação rua acima e rua abaixo. Pelo menos naquela mesa de café, os mais velhos agradecem. “Também disseram que iam construir uma capela lá em cima. têm o terreno, têm tudo, mas até agora nada, não é, meu menino?” Augusta sorri para o bisneto que acaba de acordar.
“Eu já tenho 60 anos e vou continuar a viver aqui. Por mim, hei-de viver sempre aqui. Da minha casa só saio para o cemitério”, afirma Margarida. Augusta, a avó do bebé, corta o negativismo e diz que é capaz de viver em qualquer lado. Mudou-se há uns anos para Ermesinde, onde a filha Joana também vive com Guilherme. “Lá é muito diferente. Imagino-me a criá-lo lá perfeitamente. É que nem se compara”, afirma Joana.
Um sonho que já lá vai
“Pronto, está a ver? Ganhou outra vez!” Pousa uma peça em cima da mesa e desfaz o jogo, o quinto ou sexto daquela tarde, já perdeu a conta. Aos 37 anos, António Coelho joga dominó para se entreter. É ferrageiro, mas não tem o que fazer. O trabalho não aparece. “É muito difícil. Ainda ontem liguei para Cinfães do Douro para um trabalho que me iam arranjar e nunca mais disseram nada. Isto está bom é para o primeiro-ministro”. Volta a baralhar as peças com as mãos calejadas pelas ferragens e termina de beber a cerveja pousada na mesa ao lado.
Também ele gosta de viver em Sonhos. Vive no bairro camarário e não tem motivos para reclamar. Antes, vivera noutros bairros onde nem sequer havia casas-de-banho nos apartamentos, portanto agora está melhor.
Mas mesmo em Sonhos já viveu melhores dias. A mulher está igualmente desempregada e os filhos ainda estão a estudar. “Vive-se como se pode... Isto já foi um sonho, já, mas agora não. Antes fosse, antes corresse bem”. Suspira e volta a pegar na garrafa que, entretanto, já é outra.